sábado, 13 de junho de 2009

'VERDADE TROPICAL?"




Dois fragmentos de declarações do Caetano para a revista Cult


Primeiro - "Eu sou um grande admirador dos Estados Unidos, não tenho raiva nem ressentimento. Não acho que nossa miséria é uma conseqüência da maldade, do egoísmo deles. A nossa miséria é resultado da nossa própria incompetência, e a grandeza deles é conseqüência da competência deles, que se expressou na visão espetacular dos fundadores da democracia americana. Muita gente diz que o povo brasileiro tem um grande ressentimento contra os Estados Unidos, que se sente oprimido e que tem vontade de dar o troco. Houve até quem aplaudisse a derrubada das torres do World Trade Center. Uns, publicamente, outros, à surdina, mas não que eu não ficasse sabendo. E, possivelmente, muitos eu não soube. Mas, por outro lado, o Brasil é um país onde as pessoas pobres batizam seus filhos com nomes de Jefferson, Washington, Wellington, o que eu acho maravilhoso. Quando vai modernizando coloca Michael, por causa do Michael Jackson. Eu acho que isso quer dizer muita coisa e de certa forma, fala de algumas regiões mais profundas da alma brasileira do que essa raivinha impotente contra os Estados Unidos".

Segundo - "Outro dia tive uma discussão com MVBill a respeito disso. Ele estava se reportando a um embate que teve sobre essa questão com o Arnaldo Jabor, que estava numa posição oposta à dele. Eu acabei não me contendo e iniciei uma discussão, onde eu queria fazê-lo ver que ele precisava levar em conta que grande parte do que é, não só movimento de consciência da questão racial, como o movimento específico do hip hop, ao qual ele se filiou, tem muito do desejo brasileiro exposto em várias áreas de ansiosamente imitar os americanos. E, de certa forma, com isso, se reafirmava uma humilhação dos brasileiros perante os americanos, o que não difere da humilhação dos negros perante os brancos. Há alguma coisa aí que fica de fora quando a pessoa não coloca certos elementos na equação. Eu pedi a ele que pusesse".

MESMICE SISIFIANA



Os sons da manhã me deixam nauseado. Ônibus, carros e saltos de sapatos femininos. A água sagrada chocando contra o meu teto: o vizinho do andar superior preparando-se para fazer o mundo continuar funcionando. As edições dos jornais sensacionalizam o dia: violência, eleições, o time popular lutando contra rebaixamento, sexo, cães, gatos, arquitetura e milhares de fragmentos. Uma foto interessante: uma criança olha em direção a um buraco no vidro da janela. Da minha janela avisto a faxineira varrendo o estacionamento. Homens e mulheres retornando para casa, suas cidades sujas, destruídas. Deflação, bolsas de valores, lucros, balanças comerciais. Nenhum verso.
Velhos empurram seus corpos em direção aos hipermercados. A TV começa a ser inundada de receitas de macarronada italiana, dicas para deixar o corpo saudável, para fazer o apartamento ficar mais "verde" e aconchegante. Jovens com calças rasgadas e cabelos arrepiados vão em gangues, entre muros criptograficamente grafitados, abusar e sarrear a cara dos mestres que não se consideram mais "a luz do saber" de ninguém. Um carro pára, um cara sai, o som do rap é alto, o tênis Nike denuncia que a revolta dos pobres virou mercadoria nas mãos da classe média. O bairro mais nobre está deliciosamente quieto. Toda cidade tem seu bairro bairro nobre com cheiro diferente. O céu está azul e alguns pássaros voam em direção a não-sei-aonde.
Um absurdo. Aliás, o mundo é um absurdo. Tudo permancerá como sempre, substancialmente. Traições, mentiras, dores, desemprego, falta de amor, solidão. Mas haverá alegrias. Haverá sussurros, paixões, declarações loucas de amor. Morte e batismos. Nada além, nada aquém. A imprensa vai maquear a realidade com sensacionalismo. O planeta continuará em sua orbita corriqueira. Dizem as más línguas que o sol está iniciando seu processo de "apagamento". Como será o mundo sem luz? (Geraldo Magela)

ELO FEMININO




Do nada, do absurdo que é o imenso oceano cibernético e suas ondas anárquicas, surgiu diante dos meus olhos outros olhos. Azuis cor-de-céu-sem-nuvem. E fazem uma rima com a pele morena que deixaria Picasso a rever seu cubismo e ficar perdido. Talvez Guimarães Rosa, mineiro como ela é, explique esse encanto. Ele que era especialista em encantos ficasse só, meditando como aquelas flores do campo, que nascem e são balançadas pelo sabor do vento no meio de um sertão imaginário qualquer.Esses olhos azuis sabem lidar com palavras. Sabem nos enfiar numa trama que só ela é timoneira. É trama puramente lúdica. Irresistível mistério. Diz que nós nos perdemos em nós mesmos, ninguém faz ninguém se perder. E acho que ela sorri depois de falar de perdição, um sorriso que deixaria o Tribunal da Santa Inquisição horrorizado. Seus lábios sempre estão repousando em outros sob a égide da liberdade de ser o que é. Em imagens já vi outros olhos verterem lágrimas, em abraços, e ela estática, com o sorriso. E os mesmos olhos sempre engatilhando sedução. Tenho a leve desconfiança de que ela inspirou Caetano: "cada um sabe a dor e o prazer de ser o que é". É o elo que me falta para entender porque sou perdido assim. Talvez não, também. Talvez seja a corporificação de uma trapaça sartriana: ela é apenas uma essência gerada por uma existência virtual. E eu, com Fernando Pessoa aqui do lado, vou fingindo amor para escapar da dor de não encontrar o belo por aí. (Geraldo Magela)

FACA

Faca lambe, como língua
a torrente vagarosa da sua inocência.
Rasga o peito
e deixa o leito indecente
de palavras duras
escoarem pelo brilho perdido dos seus olhos.

O que não está em nós
é o pleito eternamente vacante
da assombrada existência
cheia de nós, de mistérios, de obviedades, de finitudes.
Solte as palavras, solte a língua, solte o olhar,
agarre em mim, nos agarremos uns aos outros: somos um poema que fica,
mas nós vamos ser lambidos pela lâmina da morte,
o grande nortes em estrelas, sem luz, profundamente obscuro.

(Geraldo Magela)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Homem que carrega a cidade


Um homem carrega nas costas uma cidade. K. afirmava: "nada de mitológico, apenas uma estória, e olha que acabaram com a palavra estória; tudo tem que vir com h na frente". E o que é real? Existe realidade? K. estava numa barbearia masculina, por lá não sabem da existência da palavra metrohomem. Um poster antigo do Botofogo e outro do Flamengo estampavam cada um dos territórios dos dois profissionais. O único elemento que os unia estava num poster que continha uma mulher nua, de pernas abertas: Vera Fischer. "Então, K., quem é esse homem que arrasta a cidade? - em tom de zombaria". K respondeu: "ele é forte como Hércules e sabe ler a cidade, suas costas estão saraivadas de balas, poluição, corrupção e muita música, sexo e coisas corriqueiras". Para K. esse homem hora tinha esperanças, outras profunda amargura. Tudo era duplo nele, menos o sexo, não havia pois mulher para ele. Ele sabia de tudo sobre a cidade. Cada buraco de rua, cada gemido feminino, cada grito masculino. Não podia fazer nada. "Ele saiu da caverna", afirmava K."via os objetos e fenômenos como eles o são". Lá no fundo da cidade tudo era imagem. K. nem ousou tocar no assunto "mídia". Se para os que viviam no meio da cidade havia possibilidades maiores imaginem para os do fundo. Mas o homem um dia rompeu os grilhões e voltou-se para a cidade. Os cidadãos do meio ficaam enfurecidos. As imagens distorcidas que eles viam eram a "realidade". O homem apanhou muito e sentiu dor. Virou-se com alegria; colocou-se olhando em posição cotidiana e fincou pé. A "realidade" era sua dor, mas sua alegria. Ele viajava entre dois polos, sempre. K. usou a escovinha para limpar seu teno e saiu em busca de mundo. (Geraldo Magela Matias)

quinta-feira, 11 de junho de 2009

MUNDICO


Mundico é nome de gente sem documento. Mundico nem achava tão importante, mas vivia carregando jornais debaixo dos braços. Era profundamente analfabeto. Um dia Mundico para K. sua profunda sensibilidade: agarrou-lhe o braço e o levou até uma imensa borboleta multicolorida. Com os dedos sujos, acariçiou a borboleta. Quando ela alçou vôo, Mundico chorou . Chorou desesperadamenente. Ninguém entendia o que Mundico falava, apenas algumas palavras. Seu "nome" fazia K. lembrar-se de Guimarães Rosa. Mas esse Mundico não é vaqueiro e nem jagunço. Ele "é" especial. Um dia K. o ouviu lamentar: "me solta dessa prisão, me solta". Ele não estava no Muro das Lamentações, em Israel. Estava diante de si mesmo, falando com algo que se chama "eu".
O mais incrível em Mundico é que ele mora num hospício. Quando o sol nasce, Mundico salta o imenso muro; quando o sol esta indo embora, ele retorna e solicita a abertura do portão, a única saída e entrada do manicômio. K. ficava rindo sozinho, K., normal... (Geraldo Magela Matias)